Resquícios e historicização do Vale do Tranqueira, por Júnior Vianna

*Por Júnior Vianna

De posse das sesmarias concedidas pelo governo pernambucano, aventureiros e curraleiros da Casa da Torre não tardaram a fincar os primeiros mourões no Sertão de Dentro. Foi nessa região que nas últimas décadas do século XVII, vivenciou a intensificação da extensiva criação do gado vacum, sobretudo no nas margens dos Rios Canindé e Piauí, tão quanto nas deu seus afluentes.

Foi diante essas investidas, que esses homens edificaram significativas fazendas no Vale do Tranqueira (afluente do Canindé), um dos reduto incipiente na colonização piauiense. Nessa paragem fizeram morada importantes nomes que contribuíram para a gênese social da capitania, pois contavam com uma geografia propícia para a bovinocultura tão quanto para se arrancharem. A aludida região oferecia ainda como motivação, terras férteis, tão quanto à perenidade da água do riacho que corria do nascente ao poente, até entrar no Canindé.

As informações primeiras redigidas sobre a região do Tranqueira são atribuídas ao Padre Miguel de Carvalho, que as expor com minúcias em seu “Descrição do Sertão do Piauí” datado de 1697. Para o conhecimento de todos é informado que antes dos jesuítas herdarem aquelas fazendas possui nas ribeiras do Riacho Tranqueira, apenas cinco fazendas (Saco, Lagoa Grande, Tranqueira, Sussuapara e Salinas), mas como noutras regiões, eram em sua maior parte absenteístas, todavia guarnecidas por homens de confianças, que era pagos pelo sistema de “sorte”.

Sem dúvida a mais notável destas estâncias, foi a Tranqueira, que possuía titulação homônima ao arroio margeado.Nela no findar do século, faziam morada os senhores Antônio Soares Touguia e Domingos Afonso Serra (sobrinho de Domingos Afonso Mafrense) tendo como apoio dois negros e uma negra. Foi nesta dita fazenda que ocorreu no dia 11 de fevereiro de 1697 importante reunião presidida pelo Padre Miguel de Carvalho tendo a companhia de quinze fazendeiros, tidos como “homens bons”, que decidiram ali o local mais propício para a edificação da futura Freguesia de Nossa Senhora da Vitória. Assim, diante o querer todos, foi escolhido o Brejo do Mocha, por ser “a parte mais conveniente aos moradores de toda a povoação, ficando no meio delas com iguais distâncias e caminhos para todos os riachos e partes povoadas”.

A Freguesia de Nossa Senhora da Vitória foi solenemente inaugura dezoito dias após a reunião na Fazenda Tranqueira, tido como primeiro ato público em nome do bem coletivo em terras do Piauí. Deste modo, no dia 02 de março de 1697 cumpria-se naquele rincão evento litúrgico e posse do primogênito vigário daquele lugar, o Padre Tomé de Carvalho.

No limiar do século XVIII, com a morte de Domingo Afonso Mafrense, validou-se seu testamento, dessa forma, os seus diletos herdeiros, os padres da Companhia de Jesus, logo marcaram território nos bens legados. Diante disso, arregimentam  ao seu patrimônio milhares de cabeça de gado bovino e diversas fazendas, dentre elas a Tranqueira. Usufruíram das benesses dessas terras por quase seis décadas até serem desapossados das mesmas por imposição do rei português D José I.

Confiscado os bens dos jesuítas, essas fazendas tão quanto o gado vacum e os escravos que as compunham, passam a ter a alcunha de Rei ou Real do Fisco. Para ter intensa participação nos lucros oriundos dessas extensas fazendas, a Coroa as dividiu em três inspeções geridas por inspetores que tinha como aliado os criadores de estâncias. A Tranqueira fazia parte da Inspeção do Canindé, junto com outras onze (Ilha, Pobre, Baixa dos Veados, Sítio,Porções, Saco, Saquinho, Castelo, Buriti, Campo Largo e Campo Grande), ficando no poder do governo lusitano até 1823, quando se deu a emancipação do Brasil de Portugal e foi criado o Império Brasileiro sob o poder de D Pedro I. Dessa forma, as fazendas existentes no Piauí que pertenciam à monarquia portuguesa foram agregadas ao erário imperial, com a alcunha de “Fazendas da Nação” ou “Nacionais”.

Em conformidade a essas alternâncias administrativas, a Fazenda Tranqueira passou a ser uma fazenda nacional jurisdicionada ao Departamento do Canindé, moderada pelo governo provincial do Piauí. Como fazia parte do patrimônio imperial brasileiro, foi arrolada junto com as demais fazendas que faziam parte deste setor, ao dote da princesa Januária Maria de Bragança que fora oferecido ao seu pretendente e futuro marido o napolitano Luís Carlos (conde de Áquila) em 1844.

Ao certo é que, o proprietário desses bens fundiários nunca os visitou, mantendo-os absenteístas. Todavia, por alguns anos sua gerência a Manoel de Sousa Martins, o temido Visconde da Parnaíba. Entre todas as fazendas do Departamento do Canindé, tinha o visconde grande apreço pela Tranqueira, sendo nela que procurou refugiar-se em 1845 diante os ressentimentos e as querelas políticas que marcaram o fim do seu logo governo de quase duas décadas.

Com a Proclamação da República, foram estas fazendas anexadas ao tesouro nacional republicano, onde não careceu em mudar-se de denominação. Os anos foram se passando e muitas destas fazendas foram ruindo, enquanto outras moradas foram sendo edificadas no mesmo lugar ou mesmo nas suas áreas. Na região da Tranqueira, novos e diversos inquilinos por lá se fixaram, a citar os Abraãos, os Lixandrinos ou mesmos Felicianos que dali já se retiram.  E cada um ao seu modo fez daquelas terras uma via de sustentação, fossem em seus engenhos de trapiches ou mesmo nas casas de aviamento, onde produziam toneladas de farinha de mandioca.

Nos escombros da memória da primitiva Fazenda Tranqueira foi ao longo do século XX sendo erguidas novas narrativas de vivência, marcadas pela perseverança e destemor. Por lá quase não se encontra mais vestígios concretos da colonização portuguesa, a não ser uma cerca de pedra em seu estado final.  Em meio à simplicidade de seus atuais moradores, despontam a história oral, carregada ora de saudosismo ou ressentimento, que o diga dona Maria Ferreira de Carvalho, tida por alguns como “quase do começo do mundo”, mas na verdade possui apenas 82 anos de muita experiência.

O Vale do Tranqueira é hoje uma imensidão de sonhos, onde seus moradores buscam torná-los reais. Em meio a muitos percalços, se apegam na educação como via de transformação, só assim meninos e meninas podem vislumbrar para o futuro a construção de seus cabedais  e dos seus que ali moram.

 

*Júnior Vianna é historiador e professor.

 

 

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