O Bembém – por Carlos Rubem

Por Carlos Rubem*

Conheci o dramaturgo e teatrólogo Benjamim Santos, parnaibano, quando da segunda edição do Festival de Cultura de Oeiras, em 2005. Tive a oportunidade de ciceronear ilustre visitante pelas ruas da velha cidade. Sensível, ficou impactado com tudo que viu. Filho do Sr. Benedito dos Santos Lima, antigo editor do famoso Almanaque da Parnaíba, de quem o Professor Possidônio Queiroz sempre me falava com respeito.

Poeta, atuou no movimento de renovação do Teatro Infantil no Rio de Janeiro. No Recife, montou vários espetáculos artísticos. Faz um bom tempo que retornou aos seus pagos natalinos. Edita o jornal “O Bembém”, batizado em forma de homenagem ao seu genitor, assim apelidado.

Joca Oeiras, recém falecido, sentou praça, em definitivo, na Primeira Capital do Piauí, em 2006. Antes morou, pouco mais de um ano, em Parnaíba, na rua Conde D’eu, onde instalou sua Casa da Cajuína, local que abrigava todas as tribos. Neste período, estreitou amizade com o Benjamim Santos, com quem mantinha assídua correspondência digital. Exatamente, no dia 31 de outubro passado, Joca foi hospitalizado com crise respiratória. No dia 25 daquele mês, Benjamim postou nos Correios exemplares da 118 edição do jornal “O Bembém”, no qual estampa seu comentário acerca do livro “O Terno e o Frango”, de autoria do Joca Oeiras. Acontece que o “O Anjo Andarilho” faleceu no dia 09 de novembro do mês que se esvai sem tomar conhecimento da crítica literária que o Benjamim fez sobre sua obra. Lamentável!

Tais exemplares estavam sobre a mesa do meu escritório participar há dias e me recusava olhar aquela publicação. Hoje (24.11.2017), tomei coragem e abri o pacote de jornal, ocasião em que me deparei com a aludida apreciação do Benjamim, a qual, a seguir, disponibilizo a todos:

O terno e o frango – BENJAMIM Santos

Assim é o livro de Joca Oeiras, produzido sob patrocínio do Instituto Amostragem: um volume, de pouco mais de 250 páginas em que se percorre um roteiro de lembranças de uma família de classe média paulistana; lembranças que abrangem sobretudo os anos quarenta-cinquenta-sessenta do século passado, embora recuem ao princípio do século e avancem aos dias de hoje, quando o autor mergulha no mundo virtual à procura de resultados da passagem do tempo em certas pessoas de quem não sabe o que lhes fez o destino..

No final dos anos vinte, Antônio Mendes de Almeida, pai do Joca, ingressou no Partido Comunista e, durante anos, manteve intensa atuação política, o que se documenta com a fotografia de 1928, em que está na rua defendendo o direito de greve e exigindo a libertação de grevistas presos. Pouco depois, deve ter sido forte sua atuação na Revolução de 30 pois que o novo Governo o exilou por dois anos no Uruguai. Fora do país, perdeu a Revolução Constitucionalista de 32, quando São Paulo entrou em guerra contra as forças de Getúlio Vargas. Daí que a Revolução de 32 não entra no livro, mas, nos anos cinquenta-sessenta, os dois únicos filhos de Antônio já estão também no Partido Comunista.

No convívio com altas personalidades do Partidão, Joca, ainda menino, ouve alguém declarar que Marylin Monroe, no esplendor do sucesso, era “o retrato acabado da podridão capitalista”.

Em 1954, o livro lembra as festas do 4º Centenário de São Paulo. Assunto que correu o Brasil e chegou até Parnaíba através também de um disco da Hebe Camargo que fez o país inteiro cantar a marcha-dobrado “Oh, São Paulo! Oh, meu São Paulo! São Paulo Quatrocentão. Oh, São Paulo! Oh, meu São Paulo! Você é o meu torrão. Oh, São Paulo! Oh, meu São Paulo! São Paulo das tradições! Oh, São Paulo o seu nome vive em todos os corações”. Desse 54, o autor relembra a inauguração do Parque do Ibirapuera, com o Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, que já estava pronto desde 1953.

São pequenos detalhes paulistanos que, à época, rodaram o Brasil, como a emoção causada pelo suicídio de Vargas, que comoveu São Paulo tanto quanto o país e que deixou a avó do Joca mais desolada do que quando lhe havia morrido o marido.

​E a história continua, com tantos outros acontecimentos que repercutiram além São Paulo, contados pela visão de um paulistano, como a visita do português Craveiro Lopes e a do russo Yuri Gagarin, primeiro homem a percorrer a órbita terrestre e perceber que “a terra é azul”. São histórias que passam pelo livro, ao lado dos acontecimentos familiares com a presença de uma série de pessoas que marcaram a cultura brasileira: Mário Schenberg (que hoje é nome de escola municipal na Pauliceia), Luís Carlos Prestes, Dias Gomes, Anselmo Duarte, Mazzaropi… Nesse tópico, é comovente o “tributo” que Joca faz à bela artista paulistana Maria Leontina, da segunda geração dos modernistas, casada com o pintor Milton Dacosta, aquele das meninas em brincadeiras infantis. É toda uma linhagem de artistas que prossegue com Marcelo Grassmann, Franz Wiessermann, Wesley Duke Lee, o ainda jovem Moacir Scliar, além de “muitos outros”. Tudo tendo ao fundo a presença dominantet da cidade de São Paulo, que a família Mendes de Almeida viu sair de cidadezinha provinciana e cafezeira para se industrializar e tornar-se “a cidade que mais cresce no mundo” e chegar a ser “o maior parque industrial da América Latina”. Cidade que Joca Oeiras viu crescer com seus bairros ainda sem calçamento, sem esgoto sanitário, coisa que, aos olhos de hoje, nem parece que tenha sido assim há tão poucos anos, apenas sessenta, setenta.

​Além da leitura, como documentação, o livro traz fotografias de época e se faz uma delícia a contemplação de algumas, tão reveladoras de detalhes e mistérios da antiga paulistanidade. E uma dessas delícias é observar os dois que ilustram esta página, feitos com um ano de diferença, mas na mesma rua, quando os casais passavam pela mesma calçada de ladrilhos em quadradinhos e ao lado do mesmo prédio, de janelas baixas e paredes frisadas por recortes em linhas de baixos-relevos. Percebe-se então que foram instantâneos do mesmo fotógrafo profissional e autônomo, que, nos anos quarenta, devia fazer ponto naquele lugar, onde flagrava passantes e, depois, lhes entregava um papelinho com o endereço onde deveriam fazer o pagamento e receber o retrato. Alcancei um desses fotógrafos, que me flagrou, ao lado do amigo Arakén Tabajara, de passagem pela Avenida Rio Branco numa das minhas viagens ao Rio de Janeiro e, dois dias depois fui receber o retrato que ainda guardo em álbum de fotografias, coisa que o mundo virtual está acabando.

​Nas fotografias destes dois casais, o ponto de vista do fotógrafo é o mesmo com apenas uma pequena diferença: em 43, o retratista está mais perto do meio-fio e a imagem alcança um pouco mais do prédio; em 44, ele está no centro da calçada, atinge o longo da rua e, igualmente, o prédio e o fim da calçada com o poste e um carro que passa. A época do ano, porém, é a mesma, numa temperatura média, em que as mulheres, apesar de vestidos leves, usavam casacos à altura dos vestidos, um pouquinho abaixo dos joelhos. Os vestidos eram de um estampadinho de semelhança entre os dois. Os casacos, de ombreiras altas, são iguais com o detalhe de que Beatriz estava vestida no seu e Eugênia o tinha apenas sobre os ombros, porque a temperatura estava mais amena. As duas carregam luvas nas mãos, mas só Beatriz as tem calçadas. Os sapatos, de modelos parecidíssimos, com correia passando no alto dos pés. Mais que de quatro pessoas queridas pelo autor, os retratos são relíquias de uma época e de costumes de uma cidade que, então já se tornara “a cidade que mais cresce no mundo” e “o maior parque industrial da América Latina.

Assim é O terno e o frango, título e capa que dão ideia de livro de gastronomia e que não prenunciam a bela crônica que ali se faz daquela Pauliceia em ritmo alucinado de industrialização. Mais que o relato amoroso de uma família, a crônica afetuosa de uma cidade.

 

 

*Carlos Rubem é promotor de Justiça e membro de entidades culturais de Oeiras.

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