A Esperança de Sinhá Preta e das minorias – por Millena Faustino

Por Millena Faustino

Sinhá Preta, mãe de oito filhos, os criava com garra e mesmo diante de uma sociedade escancaradamente preconceituosa e racista, não deixava que seus filhos esquecessem que também eram gente, assim como aqueles que, por serem brancos, tinham a liberdade de frequentar todos os espaços.

 Certa vez, uma de suas filhas foi impedida de participar do baile há tempos desejava ir. Fez o vestido, a arrumou e fez com que sua filha se sentisse plena. Infelizmente o sonho acabou na portaria, sua filha era preta demais para entrar ali. Em outro momento, sua filha mais nova, teve seu cabelo crespo cuspido por um rapaz que se achava no direito de praticar tal ato, por ser branco. Sinhá Preta chorava longe dos olhos dos seus filhos, e inúmeras vezes suas lágrimas foram o combustível para seguir em frente. No dia seguinte, ela estava pronta para lavar as roupas dos senhores e senhoras da alta sociedade. Sinhá Preta, não pode escrever uma carta para suplicar o fim dos maus tratos sofridos por ela, por seus filhos, por sua mãe e demais companheiras negras da época. O que aquela mulher poderia fazer era fortalecer seus filhos, para que estes escrevessem com suas próprias mãos a liberdade. E assim o fizeram!

Sinhá Preta era a minha avó e não por acaso começo esse texto sobre Esperança Garcia, trazendo sua vivencia. Sinhá Preta era também Esperança, assim como tantas outras mulheres pretas que lutaram e lutam por sua liberdade, numa sociedade que ainda nos aprisiona em correntes invisíveis.

Quando, em 1770, Esperança Garcia escreveu “em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus, escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos”, Esperança descrevia ali o seu sofrimento incessante e que nem diante de tal dor, poderia desistir. Não poderia desistir por ela, por seus filhos e suas companheiras.

Assim como Esperança, quantas são as mulheres que permanecem de pé, mesmo diante de tantas pancadas? São mães, que choram os maus tratos que seus filhos sofrem em uma sociedade em que continua a matar os jovens pretos, mantendo constante o dado de um jovem negro morto a cada 23 minutos. São mulheres pretas que choram por serem violentadas, fazendo crescer o número de mulheres negras estupradas dia após dia.

Esperança Garcia não é só símbolo de força do povo preto, é símbolo de luta de todos aqueles que estão expostos ao sofrimento de uma sociedade que sempre procurou calar os menos favorecidos e que hoje constituem as minorias. Minorias no reconhecimento, minorias nas oportunidades, minorias no direito a vida.

Esperança Garcia é símbolo de força, até mesmo para aqueles que nunca ouviram falar dessa grande mulher. Em cada mãe solteira que cria seus filhos com amor e dedicação, Esperança vive! Em cada jovem negro que não se cala diante do racismo escancarado ou velado, Esperança vive! Em cada LGBT que luta pelo direito de ser e de permanecer vivo, Esperança vive! Em cada mulher que não se cala diante do seu abusador, Esperança vive! Esperança vive em Francisca Pereira, em Rosicleide Alves, em Eliane Maria, mães das mulheres que compõem o Coletivo Esperança Garcia e que leva empoderamento ás mulheres da periferia de Oeiras.

E numa época em que tanto se fala em empoderamento, lá em 1770, Esperança Garcia dava exemplo de conhecimento sobre seu corpo, sobre sua força e sua grandeza. E por acaso isso não é empoderar-se?

O reconhecimento desta mulher, como primeira advogada do Piauí, ainda que tardio, é também o reconhecimento de um povo que sofre diariamente, mas que se mantém de pé.

Que sejamos corajosos como Esperança e que de punhos cerrados, gritemos as impunidades, os descasos e as crueldades sofridas não só contra o povo preto, mas contra todos aqueles que são esquecidos e invisíveis diante de uma sociedade que ainda está doente.

Esperança Garcia,

Presente!

*Millena Faustino é psicóloga e membro-fundadora do Coletivo Esperança Garcia.

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