Maria Beú, um canto no meio da multidão

Quatro mulheres caminham no meio da multidão, que anda com fé por entre vielas e trilhas antigas da cidade que já viveu três séculos. Marcham juntas, contritas, cobertas de mantos e véus. São figuras do passado, que todo ano renascem em novos rostos, e surgem entre imagens e símbolos santos nos dias em que Oeiras revive os últimos instantes da vida de Jesus.

Foto: Reginaldo Rodrigues

Em sete paradas, uma delas desvela um pano, canta como quem chora e expõe a todos um rosto ensanguentado e sofrido. Todos observam, muitos choram, outros aplaudem, ninguém ignora. Aquela é Verônica, em Oeiras apelidada de Maria Beú – narra a tradição católica, que foi ela, a mulher que enxugou o rosto ensanguentado de Cristo, no dia da Paixão.

“Caminheiros, que passai por este caminho…”, o verso é conhecido, mas o timbre e a frequência da voz já mudaram muitas vezes ao longo dos anos. Este ano, a escolhida para entoar os acordes sofridos foi a babá, Joelma Borges, que vive pela segunda vez a experiência de ser Maria Beú. “A segunda vez é raro, são poucas pessoas que conseguem e, graças a Deus, eu fui chamada novamente. É um prazer inenarrável! Você nem imagina a alegria que eu estou, de verdade. Depois de cinco anos, fui convidada novamente e estou muito feliz por isso, muito mesmo”, celebra.

Além de trabalhar como babá e empregada doméstica, Joelma também é cantora numa banda de forró. Para ela, a experiência adquirida nos palcos não diminui o nervosismo e a ansiedade de representar a Verônica. “Não adianta, estou nervosa. A questão do público, do pessoal…você vai louvar a Deus, é muita responsabilidade. É diferente de um palco de forró. Você está ali cantando o sofrimento de Jesus e, Deus vai me ajudar a me sair bem, porque eu estou nervosa”, diz a jovem, que nesta Sexta-Feira Santa vive mais uma vez a emoção de cantar para a multidão de católicos.

Joelma conta que ser Maria Beú era um sonho de criança. “Recebi a notícia maravilhada. Era um sonho meu de infância, desde os 10 anos de idade que eu dizia para mamãe: ‘vou ser Maria Beú um dia’. E ela dizia: ‘minha filha vai conseguir’. Só que aí no decorrer, eu fui crescendo e as pessoas foram dizendo que não, eu não seria”, comenta.

Foto: Reginaldo Rodrigues

“Tem um mito, que graças a Deus foi quebrado. E diziam pra mim: você nunca vai ser Maria Beú, porque você é gorda e porque você é pobre e as Marias Beús todas são magras bonitas (me chamaram de feia, tua acha?) e ricas. E eu respondia: pois eu vou ser uma Maria Beú pobre. E quando foi em 2012, graças a Deus, eu recebi o convite. O senhor Chico Rêgo (responsável pela escolha e ensaio das Verônicas) veio aqui na minha porta. Eu fiquei muito emocionada, eu nem o conhecia, ele chamou meu pai e disse: Cadê a moça, que sonha em ser Maria Beú?”, narra a cantora.

“Meu pai respondeu: ‘é essa que lhe atendeu?’. E eu falei: ‘mas eu posso ser? Porque todo mundo diz que eu sou gorda e sou pobre’. Ele (Chico Rêgo): ‘não tem nada a ver com isso, para ser Maria Beú o que importa é voz’. Fui escolhida e foi maravilhoso, uma emoção muito grande e ao mesmo tempo me senti mais feliz ainda porque realizei meu sonho e o de minha mãe, que tinha morrido um ano antes e foi muito emocionante pra mim ter realizado e eu sei que ela viu lá do céu e gostou”, relata, emocionada.

Quem também tomou gosto pela música após encarnar a Maria Beú foi a universitária Emanuelle Santos. Verônica na Semana Santa de 2013, ela hoje é vocalista de uma banda. “Ser a Maria Beú foi uma experiência fantástica, pois tive a honra de ser uma das escolhidas para transmitir através do canto a dor que a Verônica sentiu a ver Jesus sofrendo. E poder passar isso aos fiéis com a mesma emoção é um sentimento único”, avalia a estudante.

“No começo foi difícil, pois é um canto que exige muita técnica. Tivemos que trabalhar muito a questão da respiração porque o canto puxa muito por isso. Mas depois de um tempinho deu tudo certo”, lembra a cantora, sobre a preparação com o historiador Chico Rêgo.

Antigamente

A professora Maria das Mercês Santos foi Maria Beú na década de 1980. “Eu já dava aula no Estadual, onde comecei a trabalhar, em setenta e nove. Sempre fui envolvida com negócio de música, sempre fazia parte dos corais da Igreja, de Celina Martins, da Irmã Caldas…Aí um dia eu ia passando na rua, falei com Zé de Helena, perguntei: ‘Zé, quem é que vai ser a Maria Beú esse ano? Isso em oitenta e cinco. E eu fui a Beú em oitenta e oito’”, relembra.

{José Hipólito Marinho, o Zé de Helena, era uma figura bastante popular em Oeiras. Era ele quem carregava o tamborete que sustenta Maria Beú no momento do canto. Falecido em 2010, Zé de Helena confiou ao amigo Miguel de Jerônimo a missão de auxiliar a Verônica na hora do lamento.}

Mercezinha, como é conhecida, encarnou a Beú aos 28 anos, orientada pela musicista Petinha Amorim, que por muitos anos ocupou o posto sonhado por tantas moças oeirenses. “Alguém me disse, não lembro mais, que era pra fazer o teste na casa de Dona Petinha. Ela era quem ouvia a gente cantando para confirmar. Eu fui, ensaiei com ela. Antes já tinha a questão da promessa, mas geralmente quem se candidatava tinha aquele dom”, relata a professora.

Quase 30 anos depois de ter vivido a emoção singular, Mercezinha fala das sensações que povoam sua memória até hoje. “A emoção não tem como explicar, porque você tem aquela responsabilidade, mas ao mesmo tempo você não tá fazendo só aquele teatro para representar para aquelas pessoas. Também é uma forma de penitência. A gente passa cada sufoco naquele aperto. Pra mim, além de ser privilegiada por poder cantar na procissão, teve a emoção, que é muito grande”, revela.

“A gente fica nervosa. Na hora de sair no Rosário, de cara limpa, e na hora do Círculo Operário eram as horas que dava mais medo. Eu quando fui, realmente fui para interpretar a personagem da Verônica e eu estava com tanta responsabilidade…a gente fica com aquele medo de não cantar bem. Lembro de quando cantei na lotérica, aquele tamborete era molenga e Gerinho, meu irmão, segurava o microfone. Eu tinha até essa foto…”, recorda.

A professora lembra também que na década de 1980, as moças escolhidas para a missão, eram anunciadas no rádio. “No meu tempo, uma semana antes, a gente dava até a biografia para ler lá na rádio, para divulgar”, diz.

E não esquece uma velha curiosidade. “Naquele tempo tinha aquele negócio de que toda Maria Beú depois casava. Tinha aquela história. Aí no mesmo ano que fui a Maria Béu eu engravidei, mas só que eu não casei logo não, casei depois”, comenta.

“Hoje em dia tem aquelas roupas novas, aquelas sedas, aquelas coisas muito bonitas. Antes era simples, a gente pegava na casa de dona Maria de Cota e ficava escolhendo a melhor. Tinha umas que já eram até rasgadas, puídas. Aí eu peguei e fiz até outra roupa, mas simples mesmo”, rememora.

Há séculos, caminheiros que passam por este caminho param, olham e ouvem o canto da mulher que emociona narrando “uma dor assim tão grande”.

 

 

 

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Jadson Osório

Repórter

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